domingo, 20 de outubro de 2013

O leilão de Libra e o (quase) triunfo da desinformação!

Por Rafael Patto


O leilão de Libra e o (quase) triunfo da desinformação!



O leilão de Libra e o (quase) triunfo da desinformação.
Acho que a lição mais importante que o governo deve tirar de toda essa falsa-polêmica que tem se produzido em torno do leilão do campo de Libra, marcado para depois de amanhã, é a de que é urgente democratizar o acesso aos meios de comunicação nesse país. 

As meias-verdades circula com toda a facilidade desse mundo, desinformando e induzindo a população ao engano, ao passo em que o governo não fornece de maneira satisfatória a esse debate os dados, os argumentos, as conclusões de estudos que sustentam sua visão e justificam sua escolha pelo leilão.

Os principais argumentos contrários ao leilão são frágeis, muito frágeis, além de contraditórios.

Frágil ao alegar que o leilão de libra atenta contra a nossa soberania porque o pré-sal, segundo a visão dos que afirmam isso, seria ofertado a multinacionais ao invés de ser entregue à Petrobras. Primeiramente, é bom que se diga, a Petrobras é uma empresa de capital aberto. Estatal, mas de capital aberto. Não vamos nos iludir. Achar que o simples fato de a Petrobras explorar sozinha os campos do pré-sal asseguraria ao país, à União (ou ao povo brasileiro, como queira) o domínio absoluto do lucro dessa atividade é de uma ingenuidade lastimável. Sendo a Petrobras uma empresa de capital aberto, para onde esse lucro tenderia a ser canalizado? Para a bolsa de valores. Quer dizer, o dinheiro do petróleo sairia diretamente daqui, do fundo do nosso oceano, para o bolso dos acionistas da Bovespa, Wall Street etc. etc.

E o que impede que isso aconteça? Regras. Regras claras. A legislação do país que trata dessa matéria. O Marco Regulatório do Pré-sal.

Esse Marco Regulatório, elaborado, votado e promulgado durante o governo Lula (com Dilma na Casa Civil) é que reserva cotas à União, isto é, assegura que parte do petróleo que ainda será extraído seja de propriedade pública, do povo brasileiro, e não de acionistas. É esse Marco Regulatório também que prevê a participação da Petrobras em todos os consórcios que se constituam para atuar nessa empreitada extraordinariamente grandiosa da exploração do pré-sal. Ou seja, a Estatal brasileira se fará onipresente e será OBRIGATORIAMENTE operadora exclusiva desse negócio gigantesco. Teria sido isso, aliás, que afugentou algumas petroleiras que concorreriam nesse leilão. É que elas queriam disputar para serem, elas mesmas, as operadoras. Nesse caso sim, se o edital do leilão previsse essa possibilidade aí sim o interesse nacional seria afetado. Mas como o Marco Regulatório do Pré-sal impõe a Petrobras como operadora, temos a garantia de que não seremos passados para trás. (A título de comparação, durante algum tempo na Argentina, antes da YPF ser reestatizada pela Presidenta Cristina Kirchner, as petroleiras internacionais eram operadoras da exploração que elas mesmas faziam. E o que ocorria? Elas extraíam, por exemplo, mil barris de petróleo por dia e registravam apenas 400. O governo deixava de receber royalties de 600 barris (números aleatórios e meramente ilustrativos).

Daí eu me pergunto: o que querem os que ficam tentando melar o leilão de Libra? Postergar esse importantíssimo evento para tentar realizá-lo futuramente, quem sabe, num contexto reformulado que melhor atenda aos interesses das petroleiras internacionais no lugar dos do nosso país? Tentar flexibilizar o Marco Regulatório do Pré-sal para contemplar as vontades da British Petroleum e da Exxon, que não quiseram "brincar" dessa vez, para depois elas virem e jogarem um outro jogo com as regras que lhes convenham?

Tudo isso me parece revelador da inconsistência e da fragilidade dos argumentos daqueles que defendem a suspensão desse leilão.

Já a contradição se manifesta de uma forma quase patética. Um dos críticos do leilão, o professor Ildo Sauer, que foi diretor da Petrobras no governo Lula e hoje debandou para a canoa furada da Blablarina Silva, reconhece que a Petrobras não teria dinheiro em caixa para arcar com a astronômica despesa das operações do pré-sal e, por essa razão, sugere que esse dinheiro seja obtido por meio de empréstimos junto ao setor financeiro. Ora, o leilão será feito exatamente para atrair parcerias. Petroleiras virão se somar à Petrobras nesse empreendimento. Haverá um grande aporte de recursos porque, afinal de contas, é para isso que esse leilão está sendo organizado. Essas petroleiras interessadas em participar da exploração do campo de Libra injetarão recursos na condição de parceiras da Petrobras, e mais: com a Petrobras sendo a operadora, isto é, as outras estarão sob a supervisão da Petrobras.

Segundo os críticos do leilão, isso não pode. É ruim para o país. O que deveria ser feito é a Petrobras se encalacrar em dívida e depois pagar os juros dos banqueiros com o dinheiro proveniente dos lucros obtidos com o petróleo extraído. Quer dizer: aporte com empresas do mesmo segmento não pode, mas com banco pode??? Alguém entende a lógica desse raciocínio??? Com o leilão o que acontecerá é uma espécie de empréstimo sem juros: haverá entrada de recursos e essa injeção de "ânimo" não será feita como empréstimo, mas sim como parceria, isto é, as empresas correrão o risco também. Sem o leilão, o que se sugere é que a Petrobras contraia empréstimos, se endivide e corra sozinha todos os riscos. Onde é que as pessoas enxergam interesse nacional aí???

Não é a exclusividade da Petrobras que atende ao interesse nacional e assegura a nossa soberania. O que atende ao interesse nacional é a saúde financeira do empreendimento e sua sustentabilidade. Só assim o dinheiro que se produzir poderá chegar aonde deve chegar: na saúde e educação públicas. Além disso, como já foi dito, a Petrobras é uma empresa de capital aberto. O que assegura a nossa soberania são as amarrações legais que estabelecem as regras dessa exploração e partilha dos lucros. Essa amarração está feita pelo Marco Regulatório do Pré-sal, e esse Marco Regulatório está sendo aplicado ao leilão. Pronto.

Tudo isso exposto, retomo o tópico inicial deste texto: que fique a lição para o governo. É preciso urgente democratizar o acesso aos meios de comunicação, pois, enquanto a mídia desse país estiver sob domínio exclusivo dos que jogam contra o patrimônio, teremos mais desinformação e tumulto de ideias do que informação e esclarecimento. O Marco Regulatório das Comunicações é tão fundamental à nossa soberania e à nossa democracia quanto o Marco Regulatório do Pré-sal. Não podemos continuar descuidando disso.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O ‘jornalismo’ vagabundo do New York Times

O embaixador brasileiro demitido da Organização para a Proibição de Armas Químicas há 11 anos... e
O ‘jornalismo’ vagabundo do New York Times ONTEM!
15/10/2013, Moon of Alabama, EUA  http://www.moonofalabama.org/


Em 2002, José Bustani, então diretor da hoje laureada com o Prêmio Nobel da Paz, Organização para a Proibição de Armas Químicas [orig. Organization for the Prohibition of Chemical Weapons, OPCW], foi demitido, porque insistia em que o Iraque fosse incorporado ao Tratado das Armas Químicas, o que atrapalhava os planos de guerra do governo Bush.

Ontem, o New York Times voltou àquela história:[1]


Mr. [John] Bolton, então subsecretário de Estado e ex-embaixador dos EUA à ONU, disse ao diretor Bustani que o governo Bush não estava satisfeito com seu estilo de administrar.

Mas o diretor Bustani, 68, que fora reeleito por unanimidade apenas 11 meses antes, se recusou a mudar de atitude; semanas depois, dia 22/4/2002, foi demitido numa sessão especial da Organização para Proibição de Armas Químicas que reúne 145 países.

A história por trás dessa demissão foi objeto de muita especulação e diferentes interpretações durante anos, e Bustani, diplomata brasileiro, tem mantido posição discreta desde então.


Esse último parágrafo está errado. O New York Times apresenta o caso como reles “diz-que-disse”, e deixa acintosamente de lado a informação de que o caso foi julgado, que há sentença sobre a questão, e que a sentença é integralmente favorável ao diplomata brasileiro:


Mr. Bolton insiste que Mr. Bustani foi demitido por incompetência. Em entrevista por telefone na 6ª-feira, o norte-americano confirmou que abordou diretamente o então diretor da Organização para Proibição de Armas Químicas: “Disse a ele que, se concordasse em demitir-se e sair voluntariamente, lhe garantiríamos saída honrosa e discreta” – disse Bolton. 

Na versão de Mr. Bustani, a campanha contra ele começara no final de 2001, depois que Iraque e Líbia sinalizaram que desejavam assinar a Convenção das Armas Químicas, o tratado internacional cuja aplicação é supervisionada pela Organização para Proibição de Armas Químicas. 

[...]

“Discutimos muito, porque todos sabíamos que seria difícil” – disse Bustani, que é o atual embaixador do Brasil na França. Os planos para integrar o Iraque e a Líbia ao Tratado, que Bustani apresentara a vários países, “causaram fúria em Washington” – contou ele. Poucos dias depois, começaram os avisos (e ameaças) de diplomatas norte-americanos e outros.

“No final de dezembro de 2001, já era bem evidente que os norte-americanos estavam decididos a livrar-se de mim” – disse Bustani. – “As pessoas diziam ‘eles querem sua cabeça’.”


As tais “interpretação” e “especulação” que o Times insiste em repetir e requentar já foram esclarecidas e decididas há muito tempo. Imediatamente depois de demitido por pressão dos EUA, Bustani recorreu à justiça, em ação que apresentou à Organização do Trabalho Internacional, que tem jurisdição sobre as organizações internacionais. O processo concluiu, em sentença perfeitamente clara, ao processo n. 2.232, que


1. A DECISÃO TOMADA EM CONFERÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS DA OPCW DIA 22/4/2002 É NULA.
2. A OPCW DEVE PAGAR AO RECLAMANTE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS, A SEREM CALCULADOS NOS TERMOS ADIANTE ESPECIFICADOS (...).
3. A ORGANIZAÇÃO DEVE PAGAR AO RECLAMANTE, 50 MIL EUROS, PARA REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS.
4. A ORGAIZAÇÃO DEVE PAGAR AO RECLAMANTE 5 MIL EUROS, DE CUSTAS PROCESSUAIS.[2]


A corte concluiu que a indevida influência política dos EUA levou à demissão ilegal do diretor Bustani, o que caracteriza demissão por interesses políticos, e agride o princípio da neutralidade de organizações internacionais como a Organização para a Proibição de Armas Químicas, OPCW.  A organização foi condenada a indenizar o diretor ilegalmente demitido, por danos morais e pelos custos processuais, e a pagar-lhe todos os salários a que faria jus até 2005, quando terminaria o mandato para o qual fora eleito. 

Pois... para o New York Times não aconteceram nem o processo nem a sentença! Não são referidos na matéria publicada. Para o Times, a questão continua a ser de “interpretação e especulação”, mesmo depois de já haver sentença que confirma que os fatos se passaram como narrados pelo diplomata brasileiro. 

Apagar da informação a sentença de um tribunal internacional é o meio que o New York Times encontra ainda hoje para defender os neoconservadores do governo Bush, para os quais lei alguma tem qualquer valor; e cuja única obsessão é um projeto de hegemonia global.

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[1] 13/10/2013, “To Ousted Boss, Arms Watchdog Was Seen as an Obstacle in Iraq” (Para o diretor demitido, a Organização para Proibição de Armas Químicas era vista como obstáculo no Iraque), NYT, em http://www.nytimes.com/2013/10/14/world/to-ousted-boss-arms-watchdog-was-seen-as-an-obstacle-in-iraq.html?_r=0&adxnnl=1&adxnnlx=1382030398-eEXrwAtbaNrbSTYl9yQFdQ
[2] International Labour Organization,ILO, 16/7/2003, íntegra da sentença em http://www.ilo.org/dyn/triblex/triblexmain.detail?p_lang=en&p_judgment_no=2232&p_language_code=EN

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Fracasso fiscal nos EUA obriga a trabalhar para um mundo des-Americanizado

13/10/2013, Liu Chang, Xinhuanet, China


PEQUIM (Xinhua) – Com deputados e senadores norte-americanos dos dois partidos ainda às tontas de um lado para outro entre a Casa Branca e o Capitólio, sem chegar a acordo viável que devolva a normalidade ao corpo político que tanto louvam, parece ser boa hora para que o mundo, desentendido, comece a considerar a construção de um mundo des-Americanizado.

Ao emergir do mar de sangue que foi a 2ª Guerra Mundial como nação mais poderosa do mundo, os EUA, desde então, tentam construir um império global, impondo uma ordem pós-guerra, alimentando a recuperação na Europa e estimulando a mudança de regime em nações que os EUA vejam como pouco amigas de Washington.

Com sua aparentemente invencível força econômica e militar, os EUA declararam que têm interesse nacional vital de proteger, em quase todos os cantos do globo, e habituaram-se a imiscuírem-se nos negócios de outros países e regiões distantes de suas praias.

Ao mesmo tempo, o governo dos EUA muito se tem esforçado para mostrar-se ao mundo como nação que se regeria por altos princípios morais, apesar de, clandestinamente, atrever-se a torturar prisioneiros de guerra, massacrar civis em ataques de drones e espionar líderes mundiais.

Sob o que se conhece como uma Pax-Americana, não se vê mundo no qual os EUA ajudem a diminuir a violência e os conflitos, a reduzir as populações de pobres e deslocados, e a criar paz verdadeira e duradoura.



Sobretudo, em vez de honrar seus deveres como potência liderante responsável, uma Washington interessada só em si mesma abusa de seu status de superpotência e gera caos ainda mais profundo no planeta, disseminando riscos financeiros para todo o mundo, instigando tensões regionais e disputas territoriais, e guerreando guerras ilegítimas, sob a manto de deslavadas mentiras.

Resultado disso, o mundo ainda se debate para safar-se de um desastre econômico gerado pela voracidade das elites de Wall Street, enquanto os bombardeios e as matanças já se tornaram rotina virtualmente diária no Iraque, anos depois de Washington ter declarado que teria libertado o país de um governo tirânico.

Mais recentemente, a estagnação cíclica em Washington, que não consegue construir solução bipartidária viável em torno de um orçamento, nem consegue aprovar um aumento no teto de suas dívidas, põe outra vez sob ameaça os gigantescos investimentos em dólar de muitas nações e em agonia, a comunidade internacional.

Esses dias alarmantes, quando o destino de outros jazem nas mãos de uma nação hipócrita têm de terminar. E uma nova ordem mundial deve ser criada, segundo a qual todas as nações, grandes ou pequenas, pobres ou ricas, passem a ter respeitados os seus interesses chaves, respeitadas e protegidas em pés de igualdade.

Para tanto, é preciso que se fixem várias pedras angulares, sobre as quais se venha a apoiar um mundo des-Americanizado.

Para começar, todas as nações têm de respeitar os princípios básicos da lei internacional, incluído o respeito à soberania, sem se imiscuírem em assuntos domésticos de outros.

Além disso, a autoridade da ONU, para encaminhar soluções nos hotspots globais, tem de ser reconhecida. Significa que ninguém tem direito de empreender qualquer modalidade de ação militar contra outros, sem mandado da ONU.

E o sistema financeiro mundial também tem de passar por reformas substanciais.

As economias de mercado em desenvolvimento e emergentes têm de ter voz mais ativa nas principais instituições financeiras internacionais, inclusive no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional, para que essas instituições possam melhor refletir as transformações pelas quais passa a paisagem econômica e política global.

E também se deve incluir, como item chave de uma efetiva reforma, a criação de uma nova moeda internacional de reserva, a ser criada para substituir o dólar norte-americano hoje dominante, para que a comunidade internacional possa viver permanentemente preservada dos respingos desse sempre crescente tumulto político doméstico nos EUA.

Evidentemente, o objetivo dessas mudanças não é alijar completamente os EUA, o que é impossível. Em vez disso, trata-se de encorajar Washington para que desempenhe papel mais construtivo, nos assuntos globais.

Dentre várias opções, bom será que os políticos norte-americanos comecem por encontrar saída que ponha fim ao pernicioso impasse atual.

O nascimento do mundo “des-Americanizado”


15/10/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online 


É isso. A China decidiu que “basta!” Tirou as luvas (diplomáticas). É hora de construir um mundo “des-Americanizado”. É hora de “uma nova moeda internacional de reserva” substituir o dólar norte-americano. 

Está tudo lá, escrito, em editorial da rede Xinhua, saído diretamente da boca do dragão. E ainda estamos em 2013. Apertem os cintos – especialmente as elites em Washington. Haverá fortes turbulências. 

Longe vão os dias de Deng Xiaoping de “manter-se discreto”. O editorial de Xinhua mostra, em formato sintético, a gota d’água que fez transbordar o copo do dragão: o atual ‘trancamento’ (shutdown) nos EUA. Depois da crise financeira provocada por Wall Street, depois da guerra do Iraque, um mundo “desentendido”, não só a China, quer mudança. 

Esse parágrafo não poderia ser mais explícito:


“Sobretudo, em vez de honrar seus deveres como potência liderante responsável, uma Washington interessada só em si mesma abusa de seu status de superpotência e gera caos ainda mais profundo no planeta, disseminando riscos financeiros para todo o mundo, instigando tensões regionais e disputas territoriais, e guerreando guerras ilegítimas, sob o manto de deslavadas mentiras.”[1]


A solução, para Pequim, é “des-Americanizar” a atual equação geopolítica – a começar por dar voz mais ativa no FMI e no Banco Mundial a economias emergentes e ao mundo em desenvolvimento, o que deve levar à “criação de uma nova moeda internacional de reserva, a ser criada para substituir o dólar norte-americano hoje dominante”. 

Observe-se que Pequim não advoga a sumária extinção do sistema de Bretton Woods – não, pelo menos, já; quer, isso sim, mais poder para decidir. Parece razoável, se se considera que a China tem peso apenas ligeiramente superior ao da Itália, no FMI. A “reforma” do FMI – ou coisa parecida – está em andamento desde 2010, mas Washington, como seria de esperar, vetou todas as alterações substanciais, até agora. 

Quanto ao movimento para afastar-se do dólar norte-americano, também já está em andamento, com graus variados de velocidade, especialmente no que diga respeito ao comércio entre os países BRICS, as potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que já está sendo feito, hoje, predominantemente, nas respectivas moedas. O dólar norte-americano está lentamente, mas firmemente, sendo substituído por uma cesta de moedas. 

A “des-Americanização” também já está em curso. Considere-se, por exemplo, a ofensiva de charme dos chineses pelo Sudeste Asiático, que está acentuadamente começando a inclinar-se na direção de mais ação com principal parceiro econômico daqueles países, a China. O presidente Xi Jinping da China, fechou vários negócios com a Indonésia, a Malásia e também com a Austrália, apenas umas poucas semanas depois de ter fechado outros vários negócios com os ‘-stões’ da Ásia Central. 

A empolgação chinesa com promover a Rota da Seda de Ferro alcançou nível de febre, com as ações das empresas chinesas de estradas de ferro subindo à estratosfera, ante o projeto de uma ferrovia de trens de alta velocidade até e através da Tailândia já virando realidade. No Vietnã, o premiê chinês Li Keqiang selou um entendimento segundo o qual querelas territoriais entre dois países no Mar do Sul da China não interferirão com mais e novos negócios. Pode-se chamar de “pivotear-se” para a Ásia. 

Todos a bordo do petroyuan

Todos sabem que Pequim possui himalaias de bônus do Tesouro dos EUA – cortesia daqueles massivos superávits acumulados ao longo dos últimos 30 anos, mais uma política oficial de manter lenta, mas segura, a apreciação do yuan. 

E Pequim, simultaneamente, age. O yuan está também lenta, mas em segurança, se tornando mais conversível nos mercados internacionais. (Semana passada, o Banco Central Europeu e o Banco do Povo da China firmaram acordo para uma troca de moeda (orig. swap) de US$45-$57 bilhões, que aumentará a força internacional do yuan e melhorará seu acesso ao comércio financeiro na área do euro.) 

A data não oficial para a total conversibilidade do yuan cairá em algum ponde entre 2017 e 2020. A meta é clara: afastar-se de qualquer respingo da dívida dos EUA, o que implica que, no longo prazo, Pequim está-se afastando desse mercado – e, assim, tornando muito mais caro, para os EUA, tomarem empréstimos. A liderança coletiva em Pequim já fechou posição sobre isso e está agindo nessa direção. 

O movimento na direção da plena conversibilidade do yuan é tão inexorável quanto o movimento dos BRICS na direção de uma cesta de moedas que, progressivamente, substituirá o dólar norte-americano como moeda de reserva. Até lá, mais adiante nessa estrada, materializa-se o evento cataclísmico real: o advento do petroyuan – destinado a ultrapassar o petrodólar, tão logo as petromonarquias do Golfo vejam de que lado ventam os ventos históricos. Então, o bate-bola geopolítico será outro, completamente diferente. 

Pode ser processo longo, mas é certo que o famoso conjunto de instruções de Deng Xiaoping está sendo progressivamente descartado: “Observe com calma; proteja sua posição; lide com calma, com as questões; esconda nossas capacidades e aposte no nosso tempo; seja discreto; e jamais reclame a liderança.” 

Uma mistura de cautela e escamoteamento, baseada na confiança que os chineses têm na história, e levando em consideração uma grave ambição de longo prazo – era Sun Tzu clássico. Até aqui, Pequim andou devagar; deixando que o adversário cometa erros fatais (e que coleção de erros de multi-trilhões de dólares...); e acumulando “capital”. 

Agora, chegou a hora de capitalizar. Em 2009, depois da crise financeira provocada por Wall Street, ainda havia chineses que resmungavam contra “o mau funcionamento do modelo ocidental” e, em suma, contra o “mau funcionamento da cultura ocidental”. 

Beijing ouviu [Bob] Dylan (legendado em mandarim?) e concluiu que, sim, the times they-are-a-changing [os tempos estão mudando].[2] Sem que se veja nem sinal de avanço social, econômico e político – o ‘trancamento’ [shutdown] nos EUA seria outra perfeita ilustração, se se precisasse de ilustração – de que os EUA deslizam tão inexoravelmente quanto a China, pena a pena, vai abrindo as asas para comandar a pós-modernidade do século 21. 

Que ninguém se engane: as elites de Washington lutarão contra, como se estivessem ante a pior das pragas. Mesmo assim, a intuição de Antonio Gramsci precisa ser atualizada: a velha ordem morreu, e a nova ordem está um passo mais perto de nascer.



[1] 13/10/2013, “Fracasso fiscal nos EUA obriga a trabalhar para um mundo des-Americanizado”, Liu Chang, Xinhuanet, China, emhttp://news.xinhuanet.com/english/indepth/2013-10/13/c_132794246.htm (port. no Blog Redecastorphoto)
[2] Ouve-se em http://letras.mus.br/bob-dylan/11920/traducao.html (com letra mal traduzida, mas que ajuda a ler) [NTs].

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Discurso de José Mujica na ONU

Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.


Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.
Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.
Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.
Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.
Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.
Carrego o dever de lutar por pátria para todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.
O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.
Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.
Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.
A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.
Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.
O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.
Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.
Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.
Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.
Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…
Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.
Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.
Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.
Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.
Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.
A cobiça, tão negatica e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.
Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.
Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.
Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.
Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.
Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.
A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.
Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.
Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.
As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.
Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.
Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.
A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.
Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.
Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.
Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.
Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.
O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.
Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.
Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.
Obrigado.